A ordem do senhor soou clara ao avistar o capitão do mato e seus homens arrastando seu escravo, sua propriedade:

  • Amanhã quero esse negro fujão no tronco.

Era necessário preparar o tronco e coube a mim essa tarefa.

Havia passado muito tempo com aquele velho formão talhando madeiras. Mas, naquele dia, minhas mãos resistiam, enrijecidas pela dor e sofrimento que rondavam a senzala, tão diferente dos risos folgados na casa grande.

Mais um negro no tronco. Entre tantos…

  • Amanhã? Sim, amanhã!

Esse era o tempo do senhor.

Senhor de todos nós e do nosso tempo?

Talvez, mas com certeza amanhã não era o meu tempo.

Minhas mãos calejadas refletiam a tristeza da alma ao preparar entalhes e recortes para a fixação das mãos do negro fujão. Meu irmão.

O talhar, aparentemente simples, não terminava, tornara-se complexo, como complexas são as escolhas na vida.

Cada movimento sempre adiado com lentidão calculada da culpa e do remorso que não queria carregar.

Naquele entardecer, sob os gritos do feitor, peguei novamente o velho formão e feri com força e raiva a madeira, que parecia resistir cumprir sua destinação.

Como desejava transformar aquela madeira num lindo banco, reencontrar o amor distante, sentar de mãos dadas e sentir a liberdade de novo. Amar e ser amado.

Renascer…

O som implacável da escravidão na voz do feitor interrompeu a saudade e adiou o sonho de estar livre novamente.

  • Mais rápido negro! Mais rápido!

E o trabalho recomeçou. E seguiu noite adentro, no movimento contínuo e repetitivo do formão na madeira.

Pensamentos voaram na vastidão do canavial sem-fim. Pousaram, na cabeleira tingida de prata, a tranquilidade e a alegria.

De repente, a mente vazia foi preenchida por uma visão de um tempo distante. Tempo de felicidade.

Lá estava eu na minha outra vida, num passado distante que se fazia presente.

Livre, feliz…

A viagem das recordações trouxe a sensação de liberdade. Na realidade, vivê-la novamente, de forma intensa, parecia real.

Lá estavam também o velho formão e a madeira…

A tristeza visitou novamente o coração. O velho escravo não tinha pressa. Apressar significava dor e sofrimento.

  • Humilhação…

A calma inundou minha alma e foi libertadora. Trouxe entendimento e paz.

Amanheceu e aquela madeira ferida pelo velho formão havia se transformado num lindo banco.

Sentei-me calmamente e esperei…

Logo o sangue escorreu e, entre lágrimas e suor, fiz-me livre nas minhas recordações e nos meus sonhos de liberdade…